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PORTO: “Só nos levam daqui de rastos” – A luta dos moradores pelos despejos inesperados

As lágrimas já correm pelo rosto de Teresa Carmo quando, ao fim de poucos minutos de conversa, se levanta da cadeira da sala para mostrar o que não consegue explicar em palavras.

— É por isto que nos querem fora daqui.

Afasta as cortinas da janela do quarto e apresenta o Porto versão cartão-postal: telhados cor de tijolo, o Douro em frente, a ponte da Arrábida à direita. Cenário que vale milhões.

Foi viver para ali há quase 70 anos. A avó paterna enviuvou, tinha medo de ficar sozinha. E ela, três anos cumpridos, foi fazer-lhe companhia. Cresceu a ver o rio, a brincar na rua, a fazer dos vizinhos segunda família. Casou-se, teve uma filha, um neto. Tinha uma vida simples e feliz. Mas um dia o marido adoeceu com cancro de pulmão. Não resistiu. Tinham passado poucos meses desse Natal onde viu partir o companheiro de uma vida quando o senhorio lhe bateu à porta. Pôs-lhe um papel à frente, pediu-lhe para assinar, jurou ser para o bem dela.

Sem saber, estava a rubricar um novo contrato com fim anunciado. “Até o Rui Moreira me disse que era uma fraude”, conta a perder a voz com a emoção. Tem de sair no próximo ano. “Ando doente com isto. Pensava que ia viver aqui o resto da minha vida e agora não posso. Ir para um bairro é a minha morte.”

A dois minutos dali, na fachada do número 17 da Rua das Taipas, uma frase desenhada numa enorme faixa resume o aperto que vai no coração de Ermelinda Duarte. “Nasci na Vitória. Posso morrer na Vitória?”

Uma carta registada veio dizer-lhe que não há coisa de dois meses. O aviso tinha sido dado “de boca” tempos antes: o senhorio cruzou-se com o marido de Ermelinda na rua e deu-lhe a notícia. Tinha de sair em Agosto de 2019. Eles caíram numa ansiedade diária, desejaram tratar-se de um pesadelo. Não era. “Víamos as pessoas a sair e estávamos sempre a dizer-lhes para aguentarem, para lutarem, para não desistirem. Mas foram saindo. Agora tocou-nos a nós. É muito triste.”

A resistência está prometida. O marido, doente oncológico, foi há tempos à Câmara Municipal do Porto e conversou uns minutos com o presidente. Garantiu-lhe que não arredavam pé, podia até vir a polícia. “Só nos levam daqui de rastos.”

Vale tudo?
Parece haver quem esteja disposto a isso. A qualquer coisa. Na semana passada, o senhorio de Teresa Carmo apanhou-a na rua e fez-lhe um ultimato: “Dava-me 2500 euros se saísse já.” Antes, tinha-lhe batido à porta para sublinhar a data do fim a aproximar-se.

Foi a 27 de Março, às 20 horas e 15 minutos. Quem o diz é Albina Rosa Santos, a vizinha do lado a quem o mesmo proprietário repetiu a frase ouvida por Teresa. “Foi assim: ‘Só lhe venho dar uma notícia — a sua tristeza é a minha alegria. Vai ter de ir embora’.” Albina, 65 anos, uma década de arrendamento cumprido naquela morada e uma vida inteira no centro histórico da cidade, pôs-se aos gritos, a chorar. Tal como o casal de idade da casa do lado, também surpreendido com a ordem de despejo.

O prédio está já à venda em sites imobiliários. Um milhão e 295 mil euros. São oito apartamentos e só três contratos de arrendamento fixos. Os restantes já funcionam como alojamento local.

Albina divide a pequena casa com vista de rio com a filha. “Isilda Linda Santos, 47 anos a partir da próxima semana”, apresenta-se. Tem uma enorme garrafa de oxigénio consigo. “Só sobrevivo três horas sem isto”, conta. Isilda vai falando e perdendo o fôlego. “A minha filha é muito nervosa, já lhe disse para não me falar mais daquele homem”, reclama a mãe.

Não importa se fala ou não. Com palavras de revolta ou em silêncio, vivem desde Março numa angústia sem fim. Ainda a semana passada foram parar as duas ao hospital: Albina estava com os valores da Diabetes disparados, Isilda com problemas respiratórios. “O médico diz que ou faço o transplante de pulmão ou morro. Mas o senhorio está lixado comigo: se esta lei for aprovada não me pode mandar embora, tenho 76% de incapacidade.”

Por proposta do PS, a esquerda aprovou esta quarta-feira uma lei que suspende todas as acções de despejo de inquilinos com mais de 65 anos e que residam na mesma casa há mais de 15 ou quem tenha um grau de incapacidade superior a 60%.

Isilda e Albina ganharam nova esperança. Teresa poderia fazê-lo, não fosse o contrato que a enganou.

A guerra está longe de um fim vitorioso. Os proprietários já avisaram que vão pedir uma fiscalização preventiva da lei e os inquilinos sabem que não é ainda hora de baixar os braços. Na Vitória, as faixas criadas por moradores com a ajuda de colectivos activistas como O Porto Não se Vende, Rosa Imunda e Terra Viva dão nas vistas desde o dia em que o rally encheu a cidade. Um deles, a jeito para câmaras de televisão a transmitir o evento, desapareceu rapidamente (“A corrida mais louca do Porto é a imobiliária”, dizia), os outros vão resistindo (“O meu nome é Era, já era. O meu nome é Maria, fui para a periferia”, lê-se na fachada de um edifício devoluto; “Casa vazia, vizinhança desfeita”, aparece noutro). Na Associação Recreativa da Vitória, os moradores da zona reúnem-se pela segunda vez esta sexta-feira (21h, Rua da Vitória) para debater formas de resistência aos despejos.

Paula Gonçalves vai lá estar. Por estes dias, o prédio onde habita, na Rua dos Caldeireiros, também vestiu uma faixa de protesto ao atropelo feito a vários moradores da Vitória e de todo o centro histórico. “Turismo é bom, não na nossa casa”, lê-se no número 194, onde persiste apenas uma família. Tudo o resto são turistas, um entra e sai diário. “Estão sempre a tocar à nossa campainha, é a única, não atinam com a chave. Nos States não devem ter fechaduras”, comenta a sorrir como se procurasse uma nesga de optimismo no meio da dúvida em que se transformou a vida dela.

Divide o T1 com os pais e três filhos: duas meninas, de 11 e dois anos, e um menino de quatro. Bernardo Gonçalves, o pai, vive ali há 24 anos. Em Fevereiro receberam uma carta de rescisão de contrato. Vão espalhando um monte de papéis em cima da cama: entre os vários contratos assinados por Bernardo Gonçalves, um trazia uma rasteira, numa altura em que o senhorio mudou. “A gente é enganado sem saber”, lamenta.

Bernardo tem 54 anos, é empregado de mesa num restaurante a poucos minutos dali. O médico proibiu-o de trabalhar depois de pôr uma válvula no coração, mas ele recusou-se. Assinou um termo de responsabilidade e foi. A mulher, 55 anos, é copeira num restaurante não muito afastado de casa também. Paula, 29 anos, vai fazendo umas limpezas quando os serviços surgem. Não se queixam de pouca sorte, apesar da vida sem facilidades, do rendimento baixo, do T1 para três adultos e três crianças. Só queriam continuar a viver onde têm chão. Até porque não encontram alternativas.

O pedido de habitação social foi recusado. A Santa Casa da Misericórdia só lhes mostrou casas a precisar de obras. Deviam ter saído a 30 de Abril, mas não têm para onde ir. Os vizinhos vão avisando quando vêem um anúncio. Paula tem percorrido as páginas dos classificados e a internet. “O último que vimos era um T3 por 1200 euros. Os nossos salários juntos não dão isso…”.

Quem os “tramou”, diz Bernardo Gonçalves, foi “a lei da Cristas”. “O senhorio está no seu direito, não digo que não, mas alguém tem de nos deitar a mão”, apela Paula: “A gente só quer pagar a casa e viver ao mesmo tempo. É pedir muito?”

Na União de Freguesias de Cedofeita, Santo Ildefonso, Sé, Miragaia, São Nicolau e Vitória o sinal vermelho está ligado “há dois anos”, aponta o presidente António Fonseca. O “terrorismo psicológico” é crescente, denuncia, e a avaliação não é mera intuição. Aos gabinetes sociais da junta vão chegando cada vez mais pedidos de ajuda: 452 atendimentos em 2016, 680 em 2017, 191 só no primeiro trimestre deste ano. Os técnicos têm conhecimento de 203 situações de inquilinos intimados a abandonar as suas casas porque o senhorio não quer renovar o contrato. Registaram uma tentativa de suicídio, gente que soube que a sua casa estava à venda ao sair de casa e ver o cartaz de uma imobiliária, 40 pessoas despejadas da Pensão Esperança, a preparar uma metamorfose para se transformar em Hostel.

É uma teia bem instalada. Na Tabacaria das Taipas, a “mocidade da rua” vai entrando. Pede ajuda para abrir com tesoura embalagens plásticas de lambarices. Ermelinda Duarte garante que o negócio se aguenta graças aos moradores. Os turistas compram umas águas, uns sumos. Pouco mais. Mas estão por toda a parte, como se percebe pelas ementas de alguns restaurantes que parecem ter mudado de geografia, como sugerem as setas pintadas numa parede ali em frente, apontadas em todos os pontos cardeais e acompanhadas por duas palavras: “Tourists only”. “Nessa casa morava uma senhora que foi expulsa daqui. Passado pouco tempo deu-lhe um AVC e morreu”, lamenta Ermelinda. Do primeiro andar de um prédio ao lado da tabacaria, uma senhora de cachecol azul e branco acena à vizinha. “O senhorio também já lhe veio perguntar se não queria passar para o R/C…”, murmura. É uma espécie de santuário da rua aquela varanda: cachecóis, peluches, bandeira a nomear o campeão nacional do ano. Sintoniza-se a Rádio Festival, decibéis que se ouvem a vários metros de distância.

Dois turistas param sorridentes a olhar, levantam o telemóvel para captar o cenário. E quando a música e os cachecóis desaparecerem, vão os turistas querer ficar?

Artigo transcrito do PUBLICO: https://www.publico.pt/2018/05/25/local/reportagem/nasci-na-vitoria-posso-morrer-na-vitoria-1831977

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