” Há muito, muito tempo. Numa época em que mouros e cristãos povoavam, conjuntamente, as cercanias do Porto…
As gentes do lugar olhavam num misto de incredulidade, mas também de impotência e de infelicidade, para a antiquíssima fonte. Do interior da fenda rochosa, estreita e inacessível, da qual desde sempre brotara a água que saciava a comunidade, não corria agora nenhum líquido. A fonte secara!
O fenómeno, no entanto, não surpreendeu muitas das pessoas que sabiam, há já muito tempo, do segredo guardado nas entranhas desta fonte. No seu interior enclausurara-se há já alguns anos, e por vontade própria, uma bela jovem moura. Como havia conseguido penetrar no interior daquela mina de água — coisa que jamais alguém conseguira concretizar, dadas as estreitas e reduzidas dimensões da fenda — era um segredo que ninguém conhecia. Como que a mãe natureza, num gesto de cumplicidade, permitira excecionalmente e por uma única vez, que um ser humano se conseguisse infiltrar no âmago da fonte e aí se esconder. Esconder, sim. Já que a jovem e bela moura encontrara aí o refúgio e a segurança que o mundo exterior não lhe proporcionava.
Recuemos pois mais alguns anos para perceber o que levou a jovem a esta clausura.
Não obstante ser um tempo em que mouros e cristãos partilhavam o mesmo território, ditavam ainda os usos e costumes e a fé de uns e de outros que não se deveriam misturar para lá das conveniências estritamente necessárias. E por isso a paixão e o casamento entre elementos das duas comunidades era algo tradicionalmente inaceitável.
Aconteceu porém, porque de facto o coração tem razões que a razão desconhece, que uma jovem e bela moura se enamorou por um garboso e jovem cristão. Tinham cruzado o seu olhar pela primeira vez junto daquela fonte e de imediato se apaixonaram mutuamente.
Os dias foram passando e os amantes esconderam a sua paixão das restantes pessoas, juntando-se às escondidas em rápidos e clandestinos encontros. Porém os seus amores proibidos foram descobertos pelo desconfiado pai da jovem que, de imediato, a fechou em casa e repreendeu-a ferozmente, recorrendo mesmo à violência, a proibiu de voltar a avistar o seu amado, ameaçando mesmo que se o voltasse a ver pelas redondezas o mataria.
Mas porque, com o passar dos dias, os castigos e as ameaças prosseguiam, virando-se a ira do pai também para a sua mãe e irmãs, a jovem começou a congeminar um plano de fuga. Sabendo que não tinha meios que lhe permitissem escapar para algum sítio longínquo, mas também porque tinha a esperança de que o seu amado a procurasse, decidiu esconder-se no interior da fonte. Era perto de casa e permitiria um esconderijo perfeito. Água não lhe faltaria e sabia também que, quando vislumbrasse algum conhecido e amigo, lhe poderia pedir de comer. O mais difícil seria conseguir esgueirar-se para o interior da mina, mas confiava na sua silhueta grácil e ágil para o conseguir.
Definido o plano, que não partilhou com ninguém, esperou pacientemente por uma breve desatenção do seu pai que lhe permitisse a almejada fuga. Coisa que, efetivamente, aconteceria pouco tempo depois. O objetivo estava bem definido e por isso não hesitou um único segundo.
Rapidamente se escapuliu para fora de casa e, certificando-se de que ninguém a via, correu o mais rápido que pôde até à fonte e, como que miraculosamente, conseguiu entrar para o seu interior.
Nos muitos dias seguintes em vão a procuraram. Pai, familiares, vizinhos, amigos e, secretamente, sem que ninguém o identificasse, o jovem cristão apaixonado. Escondida no interior da mina de água a moura não deu sinal de vida. Tal como havia previsto a água não lhe faltava e, quando a fome a invadiu de um modo insuportável, acabou por fazer chegar a sua voz, das profundezas da fonte, aos ouvidos de duas ou três pessoas amigas a quem lhes pediu comida e a quem fez jurar que jamais revelariam o seu segredo e refúgio.
Os dias e semanas foram passando e, persuadidos de que a jovem escapara para bem longe, familiares e conhecidos deixaram de a procurar. E o mesmo aconteceu com o seu apaixonado que, desesperado mas sem nunca se revelar, durante longas jornadas calcorreou o território à volta da casa da sua amada. Sem nunca, no entanto, se abeirar da fonte, convencido que estava de que aí ninguém se poderia esconder.
Entretanto, e apesar das inegáveis provas de amizade por parte das pessoas que a iam alimentando e que nunca a denunciaram, a moura nunca lhes revelou o nome e paradeiro do seu amado. Por muito que insistissem e lhe afiançassem que, com toda a segurança e secretismo, o avisariam do local onde ela se enclausurara para que a viesse resgatar, a verdade é que a jovem nunca pronunciou o seu nome nem deu a mínima indicação sobre a sua morada. Tendo sempre muito presentes as ameaças do pai, e temendo pela vida do jovem cristão, optou conscientemente por esconder a identidade do seu amante. No fundo e secretamente tinha a esperança de que mais tarde ou mais cedo ele acabaria por passar junto da fonte e, só então e só a ele, revelaria o seu esconderijo.
Mas ele nunca apareceu…
Os dias deram lugar às semanas, as semanas aos meses, e estes a alguns anos. Mas quando insistiam com a moura para que saísse do interior da fonte ou identificasse quem era o seu amado, a jovem afirmava que ali preferia morrer a revelar o seu segredo. Morreria de amor, se assim fosse necessário…
E foi isso que aconteceu. Decorridos alguns anos, desgostosa a jovem começou a definhar. Já raramente falava com quem lhe levava comida e só muito raramente a vinha procurar à boca da fonte.
Entretanto, e numa mágica sintonia com a dor da moura, também a fonte começou paulatinamente a disponibilizar cada vez menos água. Quanto mais a jovem atrofiava mais o líquido ia escasseando.
E chegou o dia em que a fonte se apresentou totalmente seca. Fenómeno que, no entanto, não surpreendeu as pessoas que sabiam do segredo guardado nas entranhas da fonte. E que, tristes, perceberam também o que acabara de se consumar: a jovem moura morrera de desgosto.
E foi então que ouvidos mais atentos escutaram um gotejar vindo das recônditas profundezas da galeria. Gotas que jamais correriam para a fonte, mas que continuariam a brotar por toda a eternidade… Eram as lágrimas de infelicidade da bela moura, morta por amor no interior da fonte.”
Joel Cleto, in “O segredo da Fonte da Moura”, O Tripeiro, 7ª Série, Ano XXXII, Número 12, dezembro de 2013